Os dois times entram em campo. Evidentemente , conhecem detalhadamente todas as regras do jogo, já estabelecidas há muitos anos e valendo para o mundo inteiro. Combinaram também as táticas para chegar à vitória. Mas, quando o árbitro apito o início do jogo, o que vale é a agilidade e habilidade de cada jogador, sua atenção e inteligência em perceber a quem e como deve passar a bola, sua capacidade de entrar em empatia e entrosar com todo o time, sua vontade de chegar à vitória e o prazer que sente em jogar. As regras? Não precisa mais se preocupar com elas: depois de anos e anos de jogo, elas foram in-corpo-radas. O corpo inteiro sabe como agir e reagir, normalmente, de modo que haja espaço para liberdade e criatividade.
A cantora está no palco, junto com a orquestra. Vai interpretar uma ária das ‘Bachianas’ de Vila-Lobos. Estudou a partitura durante várias semanas. Conhece profundamente a peça a ser executada e procurou entrar no espírito do compositor. Não descuidou nenhum dia dos exercícios de voz. Sem falar dos anos de estudo de música e de treino... No momento da apresentação, não precisa mais se preocupar com a partitura: praticamente a conhece de cor. Já superou todos os obstáculos e dificuldades ao longo do tempo de preparação. Antes de entrar no palco, fechou-se no camarim durante mais de uma hora para se concentrar. Agora está ali, por inteira, na melodia que flui de dentro dela. Atinge os ouvintes. Passa uma mensagem, suscita emoção.
Será que teríamos histórias semelhantes para contar a respeito de pessoas que assumem ministérios na celebração litúrgica: na presidência, na proclamação das leituras, na música...? Costuma ter o mesmo zelo, a mesma dedicação? Foram devidamente preparados para assumir sua função de liturgo ou liturga? Conhecem e in-corpo-raram as ‘regras do jogo’ da liturgia, assim como o jogador incorporou as do futebol? Prepararam e assimilaram os textos e as ações, rituais da liturgia, assim como a cantora assimilou a partitura? Aprenderam a arte de expressar o mistério através da fala, da gestualidade, da postura do corpo, da comunicação com a assembléia? Sabem lidar com os ‘sinais sensíveis’ da liturgia, a tal ponto de levar as pessoas à participação mística, ao encontro com o Ressuscitado? Tomam o tempo necessário para se concentrar e poder entrar ‘por inteiro’ na celebração?
“Como fazer para que o zelo litúrgico não signifique engessamento, tristeza e seriedade excessiva na liturgia e, ao mesmo tempo, a criatividade não signifique falta de zelo litúrgico e descompromisso com as normas? qual a linha divisória?”, pergunta alguém. Há ministros e ministras que se preocupam unicamente com as normas, as regras; o resultado é rigidez, engessamento, formalismo... que nada tem a ver com o verdadeiro espírito da liturgia que herdamos de Jesus e das primeiras comunidades. Outros ministros e ministras insistem na ‘criatividade’. Mas o que entendem por criatividade? Liturgia é uma ação ritual, cuja característica é a repetição e a fidelidade à Tradição: ‘Façam isto (e não outra coisa!) para celebrar a minha memória...’. Liturgia não se inventa, se vive. O jogador de futebol não muda as regras do jogo; a cantora não inventa uma nova música, ignorando ou modificando a partitura. Ambos exercem sua criatividade ao entrar de corpo e alma no jogo de futebol ou na música; e desta entrega nasce uma interpretação sempre nova, atual, surpreendente, tocante. É deste tipo de zelo que a liturgia precisa: unindo conhecimento e respeito pelas regras com entrega total ao ‘jogo’, levando a uma vivência profunda.
Ione Buyst
in LITURGIA EM MUTIRÃO – Edições CNBB, pág. 220-222
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